Noel Rosa e o presente do centenário

07/07/2009 17:03

No próximo carnaval, Noel Rosa será cantado e contado por sua escola pela passagem do centenário de seu nascimento.

Que presente daremos nós a ele? Que presente poderá marcar esta data tanto quanto sua escola desfilar sua vida, suas canções e seu tempo?

Nós que tanto o cantamos pela vida a fora, por todas as nossas vidas.

Imagine a cena, você aí desse lado. Alguém nascido e criado em Vila Isabel, que nasceu e cresceu ouvindo "Feitiço da Vila", vem andado pelo boulevard e alguém freia o carro, desce o vidro e manda seco: "por favor, onde fica a Rua Noel Rosa?"

E você: hã, quê? Rua Noel Rosa... bem.. acho que... hummm! ... quer dizer.... acho que... acho que é melhor perguntar ao jornaleiro...

Só que o jornaleiro também não vai saber. O carro vai parar no petisco, no bar do Costa, no bar do Gaúcho e ninguém vai saber.

Mas há uma Rua Noel Rosa. Uma rua tão bonitinha, tão acolhedora, tão pequenininha que eu gostaria até de morar nela. Só que não fica exatamente em Vila Isabel, fica na antiga Aldeia Campista, entre Andaraí, Vila Isabel e a Tijuca. No google-earth está lá cravado: Andaraí.

Para ser exato. A rua principal ali é a Gonzaga Bastos que sai da Rua Barão de Mesquita até Vila Isabel. No meio dela há uma pequena rua em aclive forte chamada General Edmundo Gastão da Cunha. Ao final desta uma ruazinha sem saída, um 'cul-de-sac' retangular, digamos. Ali está.

Para ser mais exato ainda, há outra rua lá em Cosmos, na zona oeste, próximo à Estrada de Paciência, muito longe da Vila, paciência!

Dito isto aí vai meu conselho: se alguém te perguntar onde fica a Rua Noel Rosa, finja que não ouviu. O risco é mandar o pobre coitado para Cosmos ou fazê-lo ficar rodando pelas ruas da tão simpática Aldeia Campista, onde morou o não menos carioca, o pernambucano Nelson Rodrigues.

Houve um tempo em que a cidade era muito pequena. Ia da Praça Quinze, antiga Praia D. Manuel, o Morro do Castelo, os morros de São Bento, o morro da Conceição indo até a Rua da Vala, a mesma que hoje chamamos de Rua Uruguaiana.

Eram tempos em que o povo identificava as ruas pelo que elas para ele significavam.

Assim era a Rua Direita, que prolongava a descida do morro do Castelo, sede da cidade, e conduzia para a direita em direção ao morro de São Bento. O mar batia até ali antes de recuar até onde hoje está a torre do chafariz do mestre Valentim.

Da Rua da Vala para lá  era o Rocio e depois o sertão. Dali para lá era o sertão  carioca. Quem ia para o sertão carioca, ou quem ia para a Bahia ou qualquer outro lugar, sofria muito. O melhor caminho que saia do velho centro para o "interior" tinha início ali na Lapa e ia beirando o Morro do Desterro, atual Santa Tereza.

Era tão irregular, barrancado e esburacado que acabava por sacrificar os cavalos e burros que transportavam pessoas e coisas.

Hoje ali é a Rua Riachuelo, mas o povo chamou por muito tempo aquele caminho de Mata-Cavalos. 

No final de Mata-Cavalos ficava a lagoa da Sentinela. Era região de matadouros de porcos. Ali começava o que hoje chamamos o bairro Estácio de Sá. Era a Rua Frei Caneca que por razões já sabidas o povo por muito tempo chamou de Caminho de Mata-Porcos..

Ali junto ao Sambódromo, em frente ao quartel da Polícia Militar está o Chafariz do Lagarto, também do mestre Valentim, que abastecia os viajantes que iam para o sertão ou para o interior do estado e do país. Passando pelo atual Largo do Estácio, este mesmo que o povo por tanto tempo chamou de Largo de Mata-Porcos.

E era no Caminho de Mata-Porcos que um riacho existente era atravessado por três pequenas e improvisadas pontes por onde transitavam escravos com alimentos e as lavadeiras com suas trouxas de roupas.  Ao serem abordados por vagabundos e marginais que vez por outra os assediavam, escravos e lavadeiras deram a essas pontículas os nomes alusivos ao que ouviam dos assaltantes: "ponte do aperta a goela", ponte do "cala a boca" e ponte do "não te importes".

Ali mesmo na Vila temos o mais marcante exemplo, o maior eixo viário do bairro, aquele que atravessava a Fazenda do Macaco, antes de ser Avenida 28 de Setembro era conhecido por toda a população local como Caminho do Macaco.

Agora, em nossos dias, flanando por Vila Isabel, passo pela Rua Artidoro da Costa que vem da Rua Souza Franco e dá acesso ao atual hipermercado Extra, a antiga e lendária Fábrica de Fiação e Tecidos Confiança onde trabalhava a musa de Noel Rosa inspiradora de "Três Apitos".

Quem terá sido Artidoro da Costa?

Flanando um pouco mais cheguei à Rua Piza e Almeida que passa pela entrada principal da antiga fábrica.

Quem terá sido Piza e Almeida?

E fiquei pensado se pudéssemos trocar os nomes daquelas ruas. A Rua Artidoro da Costa passaria a se chamar "Rua dos três Apitos".

A Rua Piza e Almeida se chamaria "Rua em que eu me lembro de você".

E continuei andando... fiquei pensando como seria bom se o povo de cada cidade pudesse a cada geração fazer uma revisão dos nomes de suas ruas.

Quem sabe assim a Rua dos Artistas pudesse se chamar Rua Aldir Blanc no dia 2 de setembro de 2046. Que a geração de Ismael Silva pudesse ter escolhido uma rua bem legal para ter seu nome.

E tantos outros nomes de sambistas, outros artistas, personagens das ruas do Rio de Janeiro...

Noel recebeu muitas homenagens, é verdade, mas, de minha parte, não estou nada satisfeito.

Há até um túnel, que muita gente tem medo de passar.

Há duas esculturas na 28 de Setembro. Uma, logo no começo, alusiva à "Conversa de Botequim", ele sentado sendo atendido pelo garçom. E em frente ao Petisco, um busto bem no meio da pista, na calçada divisória.

Há as calçadas musicais que também o homenageiam.

Acho pouco, insuficientes. Duas placas existentes em algum lugar confirmam isto. Uma delas foi colocada logo depois de sua morte na Praça Tobias Barreto. Quase dez anos depois a placa foi para a Praça Barão de Drummond. Não sei é se Noel teve que pagar aluguel por estar sempre ocupando praças e casas alheias, tal como a que está colocada despercebidamente  no interior da antiga fábrica de tecidos.

A própria escola que leva seu nome está lá modestamente escondida no antigo jardim zoológico do Barão.

Nenhum outro artista marcou de forma tão absoluta seu nome a seu lugar. Aceito até a comparação de Tom Jobim com o aeroporto e com a cidade, a partir do samba do avião. Dar o nome de Tom Jobim ao aeroporto é uma homenagem justíssima, irretocável.

Aceito também a comparação de Vinícius de Moraes.

A canção "Garota de Ipanema" composta com Tom Jobim no bar Veloso, na esquina da Rua Prudente de Moraes com Rua Montenegro, valeu ao "poeta" a troca ainda em vida do nome do bar para "Garota de Ipanema" e, com sua morte, a troca de nome da rua mais badalada do bairro: a Rua Montenegro passava a se chamar Rua Vinícius de Moraes. 

Perfeito. Coincidiu que Rua Montenegro não fazia alusão a nenhum nome, a ninguém cuja família pudesse reclamar. Assim como o Aeroporto, antes Galeão.

Mas se aceito a comparação desses dois grandes artistas com Noel, jamais poderei aceitar que Noel não fique em posição equivalente. Mesmo tendo vivido apenas 26 anos e em uma época em que o rádio engatinhava. 

Noel merece em Vila Isabel uma rua que tenha a importância equivalente à marca que deixou no bairro. Pelo menos uma praça.

Acho mesmo que Noel merece uma rua e uma praça.

Vocês aí podem até achar maluquice. Se dependesse de mim a 28 de Setembro passaria a se chamar Boulevard Noel Rosa. Acho até que a Rua Teodoro da Silva seria mais apropriada, a rua em que Noel veio ao mundo, à Vila Isabel e às nossas vidas.

Quanto à praça, sugiro a Praça Maracanã, localizada na confluência da Rua São Francisco Xavier com o Boulevard 28 de Setembro, marcando o início dos limites do bairro. É uma praça morta com nome fácil de ser mudado. Evidentemente merecedora, com o novo nome, de uma revitalização e reurbanização.

Há ali um prédio muito feio, operacional da Cedae. É o caso de mantê-lo porém com um concurso de arquitetos no sentido de embelezá-lo, a ele a própria praça.

Há até alternativa. Em frente a ela, do outro lado do Boulevard, também marcando o início do bairro, a pracinha onde está a escultura da "Conversa de Botequim". Ali a Praça poderia ser ampliada e dinamizada.

No caso específico de Vila Isabel toda essa argumentação aí em cima fica prejudicada porque a maioria dos nomes de suas ruas vem de abolicionistas menos ou mais comprometidos com a causa ou personalidades negras que se destacaram no tempo do império. O melhor exemplo é Torres Homem, advogado jornalista, diplomata, escritor, médico (ufa!) e político.

Por outro lado temos a mais badalada rua do bairro, a Visconde de Abaeté, que homenageia um magistrado português, Ministro da Fazenda imperial por duas vezes, mas sem nenhuma ligação com a causa abolicionista, pelo menos que eu saiba. Poderia ter sido homenageado em Copacabana, Piedade, Urca ou qualquer outro lugar

Já pensou? Ali onde é Visconde de Abaeté olhar na plaquinha azul e ler Rua Noel Rosa?

Imagina a festa de inauguração.

Todos os domingos passo por ali, por aquelas ruas.

Para mim é como recarregar bateria. Antes de qualquer passeio outro, de qualquer outra programação. Aos domingos pela manhã, Vila Isabel é uma festa.

Passo sempre pela Vila Cortez, no boulevard, casa de minha bisavó. Em qualquer época do ano sinto o cheiro forte do peru de natal que eu comia sempre no dia seguinte ao visitá-la com meu pai e meus irmãos. 

Tantas lembranças de um menino que não nasceu na Vila; nunca viu dançar os galhos do arvoredo e nem viu o sol nascer mais cedo. Mas que nunca, desde pequenininho, nunca vacilou em abraçar o samba.

Nomes de ruas citados:

1) Rua Artidoro da Costa: Em homenagem a Alcino Artidoro Costa, nascido em São Cristóvão, exímio violinista, companheiro de Catulo da Paixão Cearense na primeira década dos anos 1900;

2) Rua Piza e Almeida: Em homenagem a Joaquim de Toledo Piza e Almeida, nascido em Capivari, São Paulo, magistrado abolicionista. Observava inventários acorridos após a lei que proibia o tráfico transatlântico de escravos, libertando todos que tivessem entrado no país ilegalmente;

3) Boulevard 28 de Setembro: Referência à data do ano de 1871 em que foi promulgada a Lei do Ventre Livre que considerava fora da condição de escravo, sob condições, os filhos de escravos;

4) Rua Teodoro da Silva: Em homenagem a Antonio Teodoro da Silva, barão do Alto Muriaé, fazendeiro que colaborou com  o  Império brasileiro alforriando escravos para  lutarem na Guerra do Paraguai.

SUGESTÃO PARA OUVIR AGORA:


Samba: Três Apitos
Autor: Noel Rosa
Voz: Aracy de Almeida
Disco: Samba é Aracy de Almeida
Gravadora: Elenco
Faixa: 10

Fontes Consultadas:
Dicionário Cravo Albin
História das Ruas do Rio de Janeiro, de Brasil Gerson
Google-earth

Fonte: SRZD

—————

Voltar